terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Deu na FOLHA DE S. PAULO - ilustrada








Cartas revelam novas facetas de Cortázar

Livro, ainda sem tradução, reúne mil missivas escritas pelo argentino entre 1937 e 1984 para amigos e familiares

Organizadores contaram com ajuda de especialistas e conhecidos do autor de vários países do mundo

DENISE MOTA

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM MONTEVIDÉU


A Victoria Ocampo ele comenta, com habitual bom humor, que por uma provável "deformação profissional" costuma "recordar melhor a letra que o rosto ou a voz de muitos amigos distantes".

À irmã pede, com firme delicadeza, que não seja tão dura ao julgá-lo sobre sua permanência na França e que "não deixe passar demasiado tempo sem mandar pelo menos duas linhas".

À mulher, carinhosamente chamada de "funguinho felpudo", informa com entusiasmo que regou as plantas e que, devido aos muitos afazeres em Paris, corre "o risco de perder oito quilos".

Essas são apenas três das mil facetas de Julio Cortázar (1914-1984) que emergem da publicação do milhar de cartas reunido pela Alfaguara.

Organizadas em cinco tomos, as missivas do escritor argentino nascido na Bélgica chegam às livrarias da América hispânica, Espanha e EUA em 1º de fevereiro (primeiros três volumes) e abril. Não há previsão do lançamento da obra em português.

Uma vez mais, reuniram-se na hercúlea tarefa de juntar e organizar os escritos de Cortázar Aurora Bernárdez -primeira mulher do autor e herdeira universal de seus direitos (o "funguinho" do primeiro parágrafo)- e o filólogo espanhol Carles Álvarez Garriga. A dupla já havia trabalhado no resgate de inéditos do autor em "Papéis Inesperados" (2009) e "Cartas a los Jonquières" (2010).

Em 2000, Bernárdez e Gladis Yurkievich publicaram 732 cartas de Cortázar, que voltam nessa edição, em versão ampliada e corrigida.

Trechos que haviam sido cortados agora foram reincorporados, e os textos surgem na íntegra, por conta da percepção dos organizadores de que era necessário "tratar Cortázar como um clássico", nas palavras de Garriga. O novo volume também traz índice de obras e pessoas citadas pelo argentino.

As cartas que chegam à luz cobrem um período que vai de 1937, quando Cortázar era um recém-formado professor de Buenos Aires, a 1984, dias antes de sua morte.

Nelas o autor se remete a familiares e amigos (Juan Carlos Onetti, Mario Vargas Llosa e tantos outros) em epístolas que vão do cotidiano ao transcendental, de comentários sobre as reformas de sua residência em Paris às razões que sedimentaram seu antiperonismo ou os altos e baixos vividos com o regime de Fidel Castro, por exemplo.

O material foi coletado a partir de exemplares conservados por Bernárdez (inclusive os cartões-postais que lhe enviava o marido), pistas de cartas que Garriga pôde encontrar com auxílio da internet e por meio do pedido direto de colaboração a amigos, conhecidos e especialistas do universo cortazariano.

A convocatória se materializou em missivas vindas de diversos países, que iluminam traços da personalidade e do pensamento de Cortázar, curiosidades do dia a dia de uma trajetória pontuada por distintas etapas e detalhes sobre a gestação de obras emblemáticas como "O Jogo da Amarelinha" ou "Histórias de Cronópios e de Famas".

CARTAS DE JULIO CORTÁZAR

AUTOR Julio Cortázar (organização de Aurora Bernárdez e Carles Álvarez Garriga)

EDITORA Alfaguara

PREÇO 169 pesos argentinos (R$ 68), cada volume

Cumps

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Resenha de livro: A jogadora de xadrez

Vinte quartos, quarenta camas, oitenta toalhas brancas; um número variável de cinzeiros a esvaziar.*

Essa é a rotina, no sentido mais monótono da palavra, de Eleni, a protagonista de A jogadora de xadrez (Bertina Henrichs, Editora Record). Camareira de um hotel na ilha grega de Naxos desde jovem e já na casa dos quarenta anos, Eleni tem uma vida pacata e sem brilho ao lado do marido e dos dois filhos. Até o dia em que um alegre casal francês se hospeda no hotel onde ela trabalha e...

Ao entrar no quarto do casal parisiense para limpá-lo, Eleni esbarra em um tabuleiro de xadrez com uma partida iniciada e derruba uma das peças. Ela olha o jogo e fica frustrada por não saber onde colocar a peça caída. A partir de então, Eleni não consegue esquecer o casal francês, suas risadas, seus abraços e o jogo de xadrez que compartilham.

Decidida a ter um pouco daquele charme em sua vida, compra um tabuleiro eletrônico, desses nos quais podemos jogar sozinhos contra a máquina, para presentear seu marido, Panis. Como na sua cidade ninguém joga xadrez, mas todo mundo comenta a vida dos vizinhos, Eleni retorna à cidade dos pais e pede a um antigo professor que faça a compra por ela, assim, longe das vistas do povo.

Panis dá pouca atenção ao tabuleiro, mas Eleni não desiste de aprender a jogar xadrez. Ao perceber que, mesmo com o tabuleiro eletrônico, não conseguirá aprender sozinha, volta para a casa do professor, Kouros. E, assim, ela inicia seu caminho em busca do conhecimento, que abrirá janelas pelas quais ela nunca sequer espiou antes. O jogo de xadrez conduz Eleni a querer mais, descobrir mais e ser mais.

O livro de Bertina Henrichs é muito leve, delicado e tranquilo. Mesmo quando a cidade inteira descobre para onde Eleni quando o ônibus para a cidade onde nasceu e passa a olhar feio para ela. Mesmo quando seu marido sente vergonha dela e chega a segui-la. Mesmo quando ela tem de esconder o tabuleiro na geladeira.

É um livro simples, mas cativante. Que mostra como o conhecimento desperta uma nova vida dentro de nós.

Nota: 3 de 5

*Tradução minha. Li o livro em francês, não sei como ficou na tradução oficial para o português.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Gotas de sensibilidade

Vim declarar um amor.

Este livrinho pode parecer pouco por ser tão pequeno, mas guarda alguns dos textos mais emocionantes que já li.

Dividido em quatro partes, Histórias de cronópios e de famas é uma daquelas joias para termos sempre por perto, pois é irresistível voltar a ler.

A primeira parte, Manual de instruções, traz descrições engraçadíssimas e poéticas para fazer coisas simples (instruções para chorar, instruções para cantar, instruções para dar corda no relógio).

Um exemplo do texto em Instruções para subir uma escada:

(...) Colocaremos no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos de pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas não se deve confundir com o pé já mencionado), e levantando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.) (...)

A segunda parte chama-se Estranhas ocupações e conta a vida e as manias estranhas de uma família que, por exemplo, constrói em seu quintal diversos instrumentos de tortura, tem interesse especial em velórios e dedica-se à atividade de pousar tigres (só se sabe que os tigres precisam pousar, não sabemos como foi que levantaram voo).

A terceira parte, Matéria plástica, tem um tema mais difuso. Descreve coisas, pessoas, sentimentos. Sempre os textos curtos, engraçados, poéticos que retratam a realidade sendo decididamente non sense.
Como a descrição das gotas de chuva em O esmagamento das gotas:

(...) Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. (...)

A parte final, Histórias de cronópios e de famas, apresenta essas curiosas criaturas. Momentos na vida dessas criaturas imaginárias e encantadoras.

Os famas são seres generosos, organizados e muito metódicos.

Os cronópios são seres verdes e úmidos que cantam com alegria e perdem todas as moedas que têm nos bolsos.

Os famas para conservar suas lembranças tratam de embalsamá-las da seguinte forma: após fixada a lembrança com cabelos e sinais (...) a colocam contra a parede da sala, com um cartãozinho que diz: “Excursão a Quilmes”, ou “Frank Sinatra”.
Os cronópios (...) deixam as lembranças soltas pela casa, entre gritos alegres, e andam no meio delas e quando passa alguma correndo, acariciam-na com suavidade e lhe dizem: “Não vá se machucar”, e também “Cuidado com os degraus”. (...)

Pedras preciosas e uma das minhas grandes paixões.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A árvore da vida







Acabei de ver, com um tanto de atraso, o filme A árvore da vida, do diretor e roteirista Terrence Malick, vencedor da Palma de Ouro de Melhor Filme na última edição do Festival de Cannes.

Ao realizar a tarefa hercúlea de mostrar todo o percurso da origem do universo até os dias de hoje, Malick torna-se maçante e quase didático. As belas imagens que poderiam ser de qualquer documentário da National Geographic ou do Discovery Channel e a própria abordagem do tema não trazem lá muitas novidades, como o fizeram 2011: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, ou Koyaanisqatsi, de Godfrey Regio. Foi-me impossível evitar a comparação a esses dois grandes filmes que genuinamente inovaram a forma de fazer cinema.

Em A árvore da vida, o diretor alterna a grandiosidade de um Big Bang e a época dos dinossauros com a pequenez da trajetória humana. Logo no início tem-se uma frase dita por Deus: "Onde estavas quando lancei os fundamentos da Terra?", em resposta a Jó, que questiona por que o justo sofre.

Mas é o homem nessa sua dimensão ínfima que carrega a grande questão que assola a humanidade desde sempre: a consciência da morte. E não só a sua própria, mas também a morte de quem se ama.

Através de suas lentes, Malick mostra a história de uma família suburbana dos anos 50 no Texas, com tradição rígida e fervor religioso. Com o luto por um membro da família, alguns personagens iniciam uma jornada de indagações sobre o sentido da vida e a existência de Deus.

Em um dado momento apresenta-se a dicotomia: a vida como graça (um presente divino, simbolizado pela mãe generosa de sentimentos e altruísta) ou a vida como natureza (só matéria, representada aqui pelo pai competitivo e ambicioso). Pode-se escolher um desses caminhos. O velho maniqueísmo entre o bem e o mal, que levará um dos filhos, já na idade madura, a grandes inquietações.

Ou seja, não são questões novas e acredito que não é necessário ler Santo Agostinho ou Nietzsche para entendê-las. Todos, em algum momento, já se fizeram essas perguntas. De qualquer forma, a religião pode ser um bálsamo aos crédulos, no processo de mitigar as dores.

Na minha opinião, vale assistir ao filme por conta da estonteante fotografia de Emmanuel Lubezki, das boas atuações e angústias que convencem. De resto, pouco acrescenta. Aliás, tantas horas de filme cortadas (no original eram 8 horas rodadas) que o personagem de Sean Penn parece deslocado e sem função.

E já que o assunto é morte, eu não o colocaria como um dos importantes filmes para se ver antes de morrer.

Cumps.
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