segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

“O que somos para além do que vamos sendo?”






O livro Fazes-me falta esperava na pilha de “leituras urgentes”, que sempre sabotamos, havia pelo menos dois anos. Só este mês consegui finalmente devorá-lo. Escrito por Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou vários prêmios, surpreendeu-me pela delicadeza e leitura envolvente.

O romance, se compõe de duas vozes distintas: de um homem maduro, incrédulo e conservador, que tem todo seu histórico permeado pelo salazarismo, guerras nas colônias e desilusões amorosas, e de uma jovem idealista, abismada em Deus, traumatizada pela perda dos pais quando ainda criança e por um relacionamento anterior desastroso.

Uma narrativa insólita, em que os dois personagens mantêm um diálogo incomunicante, partido. Ela acabou de morrer e lamenta, pois não se conforma a esse novo estado, uma sobrevida num lugar a que chama noante; ele sofre com a separação brusca e definitiva, e expressa suas dores. Ambos em vida tinham uma amizade íntima, mas nunca chegaram a ser amantes. Agora, que a morte se interpôs, se ressentem da não entrega. Privilegiaram a amizade, que nunca se esgotaria como acontece fatalmente com as relações amorosas. Na verdade, os dois carregavam desilusões tamanhas que a ideia era de se autopreservarem. Imaginaram uma relação estanque, ideal, sem cicatrizes ou mágoas, tipicamente dos nossos tempos. Enfim, uma interação pessoal anódina. Só após a morte dela perceberam que uma linha tênue separava a amizade da paixão.

A própria solução gráfica do livro reitera a distância entre os dois. Em breves capítulos, os dois se alternam em dissecar a relação. Quando ela fala, a tipologia é delicada e em corpo menor, como se sussurrasse ou falasse de longe. Nas falas dele, a fonte é mais limpa, sem serifas e em tamanho maior, ou seja, ele está vivo, e mais perto de nós, leitores.

O trato das palavras pela autora e a própria tessitura do romance dão o tom a uma prosa lírica, com desdobramentos da vivência de duas gerações diferentes num Portugal contemporâneo. E como não poderia deixar de ser, no texto está escancarada toda a alma nostálgica portuguesa e a saudade como legado.



Trecho:


“Há tantas coisas que nunca te disse — e dizias tu que eu falava demais. Flutuo
por este noante em busca dessas palavras a menos, atravessadas entre nós
como um longo corredor de prisão. Em vida, sussurrava: não te perdoo o que
não soubeste saber de mim. Este noante revela-me a verdade invingada: não
me perdoo o que não soube verter-te de mim.”



Cumps.

2 comentários:

Ricardo Barreiros disse...

Nossa! Que ideia interessante para um livro. Tenho encontrado muita coisa boa (mas boa mesmo!) na literatura portuguesa contemporânea, entre os meus preferidos: Miguel Torga e Saramago.
Bem, espero que a "separação brusca" dos personagens não seja, de fato, definitiva.

Anônimo disse...

Claro que é! Ela está morta!

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